Caverna Filosófica Night Pub

Alloy é uma garotinha com espessos cabelos ruivos, quando ela começa a se dar por si, na infância, se vê exilada, separada, das outras crianças. A tribo próxima à sua morada impede sua entrada em seus “limites” e Alloy conta apenas com a presença de seu pai adotivo, outra pessoa exilada. A garotinha não sabe o motivo de ter sido exilada, se vendo apenas como uma “criança amaldiçoada” que é evitada por todos, e que sofre das outras crianças o repúdio de uma cultura do exílio. E mesmo salvando a vida de um adolescente Alloy percebe que, sequer este ato, é capaz de fazer com que as pessoas lhe deem um bom dia. E a cada momento a postura das pessoas à sua volta é explicada como sendo fruto de se seguir uma ordem hierárquica religiosa.

Mais ou menos assim começa a história do jogo Horizon Zero Dawn, um jogo de vídeo-game, ao estilo RPG de ação, desenvolvido pela Guerrilha Games, uma desenvolvedora neerlandesa sediada em Amsterdã. Desde seu início Horizon apresenta a crítica ao pensamento religioso que carrega: apresenta uma recém nascida abandonada em uma natureza hostil, em um inverno rigoroso, à própria sorte, para morrer. Abandonada pela liderança religiosa da aldeia a que, supostamente pertencia, e que encontra em um “pecador exilado” a única esperança de sobrevivência. A crítica ao pensamento religioso começa brilhante, já que é assim que age o pensamento religioso: negando, abandonando e deixando para morrer tudo aquilo que não compreende. A não compreensão sobre Alloy, a destemida ruiva, surge na história apenas mais tarde.

Em seu início Horizon acerta ao apresentar uma religião exclusivamente feminina, e não demora muito a acertar novamente ao apresentar outras religiões, dentre as quais, uma exclusivamente masculina, e brilha ao declarar: é tudo a mesma m*rd@! O foco da crítica do jogo não é sobre esta ou aquela religião, esta ou aquela estrutura religiosa, o alvo é o pensamento religioso em si. Desde o início o jogo apresenta a estrutura de tecnologia “avanço”, filosofia “na busca por lidar com o meio” e o desejo e a curiosidade como elementos investigativos para saber a verdade “ao redor” confrontando com “verdades religiosas”, proibições religiosas, preconceitos religiosos. E vai acertando, quadro a quadro, na apresentação do abandono às pessoas que pensam diferente, a exclusão dos que tentam sobreviver, o exílio daqueles que apenas são diferentes e de como, os demais, vivem um sonho fechado em uma bolha sem se preocupar com o resto (da humanidade) e aceitando apenas o que lhe é igual, submisso, subserviente.

Dentro da estrutura de apresentar uma sociedade guiada pelo pensamento religioso o jogo apresenta as complicações de se envolver religião com política, de como aquelas próprias sociedades presenciaram os erros que isso leva no passado e de como, mesmo assim, insistem em se manterem nesta estrutura de erros. Disputas por poder e região entre as tribos que restaram em um humanidade pós-apocalíptica são impulsionadas pelo pensamento religioso e as religiões locais. No fim, pessoas se matando por gostarem de “cores diferentes”. Neste aspecto a crítica elaborada pelo jogo da Guerrilha Games se mantém atual e necessária: sim, precisamos questionar o pensamento religioso e este precisa se voltar apenas ao que lhe compete.

Por ser um jogo eletrônico, Horizon também inova e lida com o problema do protagonismo feminino. Estatísticas indicam que a maior parte do mercado de consumo de consoles e jogos é masculina, e nas sociedades virtuais sempre vemos sociedades que se destacam por uma masculinidade toxica e machismo. Horizon não só inova ao manter uma personagem feminina como também o faz de maneira primorosa sem sensualizar esta personagem ou a caracterizar como objeto sexual. As armaduras que Aloy usa, fazem sentido cobrindo o corpo. O corpo de Aloy é como o corpo de qualquer mulher atlética, seu rosto não é perfeito esculpido à moda “barbie” e seus cabelos são espessos e volumosos cabelos ruivos! Ainda, o jogo brilha por mostrar que mulheres são iguais aos homens, (inclusive nos equívocos ao seguir o pensamento religioso) e esta igualdade é latente. Existem lideranças femininas, grandes nomes de guerreiras femininas, e em nenhum momento aparem de forma exagerada em aspectos sensuais. O jogo constrói também uma gama de personagens plurais de diversas etnias e raças.

Com uma história que pode, inclusive, ser adaptada para o conteúdo em salas de aula Horizon Zero Dawn é uma das obras primas no universo dos jogos virtuais e abre um precedente: um jogo com protagonista feminina que não apresentada de forma erotizada com uma história que aborda a crítica ao pensamento religioso e que faz sucesso de vendas e críticas. E ainda que, aparentemente, o jogo esteja sofrendo um “silenciamento” das mídias especializadas, Horizon está ai para quem quiser conhecer e se encantar. Claro que como todo e qualquer jogo existem pequenos defeitos, claro que para um jogo de RPG das dimensões que apresenta a estrutura de diálogos e envolvimento poderia ser mais elaborada, mas nada disso ofusca o brilho e o impacto de um jogo que apresenta elementos positivos tão significativos para a construção de pontos críticos e questionamento do feminino em sociedade.

Ainda estou naquela procura que lhe falei...

Minhas experiências com esse game foram de alguns minutos na Saraiva, nos stands de teste dos consoles.

Ainda bem que alguns jogos continuam tocando nas feridas do mundo real.

Att

"Assim que a estrela Lúcifer afasta as trevas,
Febo, seguindo os passos da noite,
Lança seu carro nos purpúreos céus.
Começa tu também a tirar da tua cerviz
O jugo e examina os falsos bens:
Assim teu espírito se abrirá aos bens verdadeiros.”

Boécio. A consolação da filosofia (Clássicos WMF) (Locais do Kindle 1367-1372). WMF Martins Fontes. Edição do Kindle.

Eis que desperto! Agora, é beber sangue o suficiente e transformar esta forma decadente em... UMBRIO! A DE VIDA ETERNA!

Espaço gentilmente cedido para problematizadores problematizarem...

Perguntas? Alguém? Trazer para cá a discussão do what´s? Começar outra? Algo ficou sem ser abordado ou explicado?