PRIVATIZAÇÃO DO MUNDO
A propriedade privada moderna reforçou monstruosamente a submissão da natureza "livre" à forma da organização social, obstruindo assim o acesso aos recursos naturais com um rigor nunca visto. Essa intensificação da tendência usurpadora tem sua razão no fato de a ocupação ser efetuada agora não mais pelo ato pessoal e imediato de violência, mas pelo imperativo econômico moderno, representando uma violência "coisificada" de segunda ordem. A violência armada imediata manifesta-se ainda hoje na ocupação dos recursos naturais, mas ela é já coisificada de forma institucional na própria figura da polícia e do Exército. A violência que sai dos canos das espingardas modernas já não fala por si mesma; ela tornou-se mero beleguim do fim em si mesmo econômico. Esse deus secularizado da modernidade, o capital como "valor que se autovaloriza" incessantemente (Marx), não aparece, porém, apenas na figura de uma coisificação irracional; ele é ainda muito mais ciumento que todos os outros deuses antes dele. Por outras palavras: a economia moderna é totalitária. Ela levanta uma pretensão total sobre o mundo natural e social. Por isso tudo o que não está submetido e assimilado à sua lógica própria é para ele fundamentalmente uma espinha na garganta. E, como sua lógica consiste única e exclusivamente na valorização permanente do dinheiro, ela tem de odiar tudo o que não assume a forma de um preço monetário. Não deve haver nada mais sob o céu que seja gratuito e exista por natureza. A propriedade privada moderna representa somente a forma jurídica secundária dessa lógica totalitária. Ela é, por isso, tão totalitária quanto esta: o uso deve ser um uso exclusivo. Isso vale particularmente para os recursos naturais primários da terra. Sob a ditadura da propriedade privada moderna, não é mais tolerado nenhum uso gratuito para a satisfação das necessidades humanas, além das oficiais: os recursos têm de servir à valorização ou ficar em pousio. Dada a forma da propriedade privada, mesmo a parte da terra que o próprio capital não pode de modo nenhum usar deve ser excluída de qualquer outro uso. Essa imposição descabida suscitou repetidas vezes o protesto social. Na época anterior a 1848, uma experiência crucial para o jovem Marx, amiúde enfatizada na sua biografia, foi a discussão em torno da "lei prussiana contra o roubo de lenha", que queria proibir os pobres de recolher gratuitamente a lenha nas florestas. O conflito sobre o uso livre de bens naturais, sobretudo da terra, jamais cessou em toda a história do capitalismo. Mesmo hoje, em muitos países do Terceiro Mundo, há movimentos sociais de "ocupantes da terra" que colocam em questão a ditadura totalitária da propriedade privada moderna sobre o uso do solo.
Robert Kurz
Tradução de Luiz Repa.
Publicado na Folha de S. Paulo, 14.07.2002,
sob o título "Modernidade Autodevoradora"